Tito 1 e 2: OS FUNDAMENTOS DA FÉ CRISTÃ

OS FUNDAMENTOS DA FÉ CRISTÃ

Tito 1 e 2

Escrevendo a Tito, um companheiro de trabalho, o apóstolo Paulo oferece mais um de seus extraordinários resumos da fé evangélica.
Neste resumo, há palavras fora da visão humana acerca da vida. Eis alguns exemplos: eleitos, graça, glória e renúncia.

Fundamento 1
DEUS AMA OS SEUS ESCOLHIDOS.
A expressão de Paulo com a qual se designa (“servo de Deus” — verso 1) pode nos parecer pré-moderna. Temos dificuldade com a palavra, especialmente quando nos lembramos que é a mesma empregada para designar um escravo na sociedade romana.
No entanto, ser servo (isto é, alguém disponível para Deus) era a felicidade de Paulo. Por isto, chegou a dizer que não tinha a sua vida como algo de valor precioso, porque precioso era estar a serviço de Deus. Servo é aquele que, não mandando em si mesmo, sabe que não manda e tem prazer em ser comandado por Deus.
Todas os homens e mulheres verdadeiramente felizes da história da humanidade foram servos, voluntariamente servos. Ao agirem assim, seguiram o modelo do próprio Deus, de que fala o mesmo apóstolo em outra de suas sínteses magistrais: “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo” (Filipenses 2.5-7a).
Para os não-cristãos, este é um termo difícil, reconheçamos. No entanto, mais difícil ainda é a idéia de que somos “eleitos de Deus” (verso 1), se isto implicar que alguns não o são.
O termo, que parece significar, como o entendem alguns cristãos a quem respeitamos, que, desde antes de a história humana existir, Deus escolheu alguns para serem salvos e outros para ficarem na perdição, teremos um amor arbitrário, que tira a responsabilidade de quem é amado e de quem não é amado.
No outro extremo, e esta é outra solução, estão os que acham que Deus não destina ninguém previamente para viver na presença dEle ou na Sua ausência durante a eternidade, pondo toda a ênfase na liberdade humana (ou livre-arbítrio).
Se a primeira solução leva `à conseqüência de se restringir o Evangelho aos escolhidos para recebê-lo, a segunda deixa Deus como marginal no processo.
. Deus chama a todos, insistentemente, mesmo sabendo previamente quem vai responder “sim” e quem vai preferir ficar no “não”. O apóstolo Pedro (1Pedro 1.2) nos lembra que a eleição acontece a partir do conhecimento prévio (ou presciência) que Deus tem
. Deus elege os que respondem, justificando-os, isto é, considerando-os sem pecado porque perdoados pelo sangue de Jesus derramado desde a cruz sobre aqueles que desejam este perdão.
. Deus preserva os eleitos, guardando-os para sempre na fidelidade ao Seu amor. Até aqui a liberdade está presente, mas Deus guarda os eleitos de renunciaram a escolha que fizeram.
O amor de Deus explica tudo. Por amor, ele criou os seres humanos, a partir de Adão. Por amor, Ele continua criando os seres humanos, no devir da história. Por amor, Ele enviou o Seu filho. Por amor, Ele nos dá o Seu Espírito para nos fortalecer na luta da vida. Por amor, Ele nos espera na Sua casa, que a torna a nossa também. E o amor não é lógico.
Por causa do amor, os eleitos de Deus formam um povo particular (verso 14). Jesus “Ele se entregou por nós a fim de nos remir de toda a maldade e purificar para si mesmo um povo particularmente seu, dedicado à prática de boas obras” (verso 14). Ser parte do povo particular de Deus significa ter aceito o convite para um novo tipo de relacionamento, mediado pela graça de Jesus; significa dispor-se a um estilo de vida santo; significa mais privilégio do que compromisso; significa mais serviço do que glória.
Devemos tomar cuidado com a expressão “povo de Deus”, aplicado indiscriminadamente. Quando Israel saiu do Egito em direção à terra prometida, alguns não eram hebreus, mas estavam em busca da bênção de um Deus em quem não criam. Há uma condição para ser povo de Israel no Testamento antigo: “Agora, pois, se diligentemente ouvirem a minha voz e guardarem a minha aliança, então serão a minha propriedade peculiar dentre todos os povos, porque toda a terra é minha” (Êxodo 19.5). No Testamento novo, a graça não vem após uma caminhada no deserto, porque é um presente Deus por meio de Jesus. Só precisamos olhar para a cruz. Sim, só é povo de Deus quem olha para a cruz, porque a vida está nela; o relacionamento filhos e Pai, como um povo de Deus, é possível para quem olha para a cruz. Permanece uma condição, uma condição de glória, mas uma condição.

Fundamento 2
DEUS NOS OFERECE JESUS CRISTO COMO A EXPRESSÃO MÁXIMA DO SEU AMOR PELOS ESCOLHIDOS
O amor, sem lógica, de Deus tornou-se visível, tocável, sentível, quando Jesus apareceu na história. Quando Jesus apareceu, “a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens” (verso 11).

O amor de Deus, portanto, deixa de ser vago, para ser concreto, existencial, plenificador, por ser graça.
Mesmo apesar da graça, a desgraça continua presente no mundo, resultando na dificuldade de sorvermos esta graça enquanto escutamos os rumores do outro mundo (conforme a expressão de Philip Yancey), do mundo eterno. Não nos preocupemos: haverá um dia em que a graça será total, alcançando a todos. Quando isto acontecer, a graça trocará de nome: será glória. Quando a glória de Jesus aparecer, Sua graça será completa (Tito 1.13) e então experimentaremos a graça em sua plenitude, então sem véu.
“O centro do Critianismo é o aparecimento do Filho de Deus no mundo como um homem real para destruir as obras do diabo e criar um novo povo para sua própria glória” (John Piper). Jesus, portanto, não veio para trazer uma proposta, voltar com esta proposta para o céu e nos deixar no suspense. É por isto que alguns já experimentamos sua graça e outros ainda vão experimentar.
Como se expressa esta graça? Jó foi torturado psicologicamente por amigos que Deus lhe enviou para apoiá-lo quando estava vivendo no vale da sombra da morte. Eles apostaram na sua culpa. Restaurado, Jó teve nas suas mãos o destino dos ex-amigos: eles morreriam ou viveriam. Jó agiu com graça: eles mereciam morrer, mas Jó orou por eles para que vivessem e viveram. Graça é isto: por causa dos nossos pecados, todos merecíamos morrer, mas fomos riscados da lista dos condenados; saímos da lista de Hitler, para a lista de Schindler; saímos da lista de Satanás, para a lista de Cristo. Se quero a glória, preciso da graça.

Vamos tornar visível esta verdade, com um sanduíche, Devo esta idéia a uma frase de John Piper, num dos seus sermões.* um conjunto de dois andares de pão recheado por uma porção de carne ou frango ou peixe ou mesmo uma pasta.
O primeiro andar, como está no verso 14, é constituído pelo aparecimento de Jesus, com sua graça. O segundo andar, como está no verso 12, é feito de renúncia à impiedade e às paixões mundanas, para uma vida sensata, justa e piedosa. O recheio é a esperança da glória.
Cristianismo é um sanduíche completo, feito de graça, renúncia e gloriosa esperança.

Fundamento 3
DEUS CAPACITA OS ESCOLHIDOS PARA UMA VIDA DE PIEDADE
Paulo nos garante que “a graça de Deus”, que “se manifestou salvadora a todos os homens”, nos “ensina a renunciar à impiedade e às paixões mundanas e a viver de maneira sensata, justa e piedosa” (versos 11 e 12).
Entre a graça e a glória, há um ínterim. Podemos, no entanto, antecipar esta graça completa, ou esta glória, e o fazemos pela conjugação paradoxal de um verbo anti-humano: renunciar. Se queremos a graça, precisamos renunciar o que nos afasta dela.
O estímulo e o poder para a uma vida santa vem como decorrência de nossa gratidão diante da graça de Deus que se manifestou em Jesus Cristo durante sua primeira vinda quando Ele comprou nossa redenção e vem também com a esperança diante da glória que surgirá na Sua segunda vinda, quando ele completará nossa redenção. PIPER, John. Our hope; the appearing of Jesus Christ. Disponível em <http://www.desiringgod.org/library/sermons/86/051886.html>. Acessado em 5.5.2005.
Renunciar não é natural em nós. Queremos sempre mais.
Os monges nos falaram de sete pecados capitais, os quais devemos evitar. Então, devemos evitar o orgulho. No entanto, todos achamos que devemos celebrar os vencedores e esquecer os perdedores; por isto, a vitória deve ser obtida a qualquer preço, mesmo que seja o peso da competição e da depressão. Há até crentes orgulhosos de sua salvação, como se fosse uma conquista e não um prêmio não merecido. Os parágrafos seguintes estão inspirados em YANCEY, Philip. Rumores do outro mundo. São Paulo: Vida, 2005, p.105-106.
Devemos evitar a inveja. No entanto, toda o mundo da indústria e do comércio é erigido sobre a idéia de devemos e podemos ter seus novos produtos, especialmente se mostrados adornando o corpo de um ídolo moderno. Os anúncios são bem explícitos: “Você pode ter um”.
Devemos evitar a ira, mas achamos natural quando alguém reage. Até ensinos ditos científicos segundo os quais não podemos “segurar” a raiva, sob pena de ficarmos doentes. As guerras nascem do interesse e da ira. Um dia desses, a televisão mostrou as imagens de um boxeador nocauteando um juiz, para explicar, depois, que ele mereceu o castigo para aprender. Sua esposa teve o mesmo comportamento com outro juiz e fez o mesmo comentário, entre risos. Quem reage é forte. Quem não reage é covarde.
Devemos evitar a ganância, mas não reclamamos quando a indústria publicitária nos convence a consumir cada vez mais. Sentimo-nos mais incomodados em não ter do quem em desejar o que não precisamos, esquecidos do que disse G.K. Chesterton: “Há duas formas de se ter o suficiente: uma é continuar acumulando e a outra é desejar menos”. Citado por YANCEY, Philip. Rumores do outro mundo…, p. 108.
Devemos evitar a preguiça, mas todos sonhamos com um tempo em que não precisaremos trabalhar, curtindo a vida à beira da praia.
Devemos evitar a gula, mas a cada dia os sacos de pipoca às portas dos cinemas são maiores. A obsesidade é doença tipicamente norte-americana (pois nos Estados Unidos, 64%da população estão acima do peso), que chega ao Brasil: numa trágica contradição, 41% dos brasileiros estão acima do peso.
Devemos evitar a luxúria, mas ela é o setor mais lucrativo da internet. No Brasil, quando a novela das oito está ruim de audiência, eles escalam uma mulher nua e promovem cenas de sexo.
Tem razão Thomas Merton: tentamos ser felizes sendo admirados pelos homens ou amado pelas mulheres, ou nos aquecemos na bebida ou nos fartamos na luxúria ou acumulamos bens e tesouros: “isso tudo nos distancia, a curto prazo, do amor de Deus. Então, homens, mulheres, bebidas, luxúria e ganância passam a ter prioridade sobre Deus. Eles obscurecem a luz divina. Então, ficamos infelizes, temerosos, furiosos, ferozes e impacientes. E já não podemos orar, não podemos sentar quietos. Esse é o amargo jugo do pecado. Por ele, abandonamos o leve e suave jugo de Cristo”. Citado por YANCEY, Philip. Rumores do outro mundo…, p. 110.
Renunciar não é natural em nós. Por isto, somos ensinados a uma vida de renúncia, para que vivamos de modo sensato, justo e piedoso. Deus nos ensina a esta vida, mas somos nós quem a vivemos. A impiedade e as paixões mundanas nos afastam da graça e glória de Jesus Cristo. A impiedade e as paixões humanas não passam de lentilhas pelas quais trocamos a graça e a glória de Jesus Cristo.

Fundamento 4
DEUS NOS DESAFIA À PRÁTICA DAS BOAS OBRAS
Poderíamos incluir a prática das boas obras no capítulo da piedade, mas ela é tão central e tão perigosamente esquecida que precisa estar na nossa mente como um fundamento de nossa fé.
Leiamos, outra vez, o apóstolo a Tito: Jesus “se entregou por nós a fim de nos remir de toda a maldade e purificar para si mesmo um povo particularmente seu, dedicado à prática de boas obras” (verso 14).
Um dos grupos que circularam em torno de Jesus foi o dos zelotes, que desejavam a libertação da terra dos judeus das mãos romanas. Um dos discípulos de Jesus era zelote.
A palavra “dedicado” aqui é precisamente esta: zelotes. Devemos ser zelotes (radicalmente dedicados) à prática das boas obras.
Por preguiça, temos conseguido separar piedade de boas obras, salvação de boas obras, vida eterna de boas obras, mas não podemos. Não existe fé sem boas obras, repete Tiago ao longo da sua carta, num grito que deve ecoar em nossos corpos e nas nossas igrejas. Tiago é radical, divinamente inspirado: “De que adianta, meus irmãos, alguém dizer que tem fé, se não tem obras? Acaso a fé pode salvá-lo?” Não, “uma pessoa é justificada por obras, e não apenas pela fé (Tiago 2.14 e 24).
Quando Paulo, ainda no mesmo livro a Tito, faz outro resumo dos fundamentos da fé, ele repete: “Quando, da parte de Deus, nosso Salvador, se manifestaram a bondade e o amor pelos homens, não por causa de atos de justiça por nós praticados, mas devido à sua misericórdia, ele nos salvou pelo lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele derramou sobre nós generosamente, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador. Ele o fez a fim de que, justificados por sua graça, nos tornemos seus herdeiros, tendo a esperança da vida eterna. Fiel é esta palavra, e quero que você afirme categoricamente essas coisas, para que os que crêem em Deus se empenhem na prática de boas obras” (Tito 3.4-8a).
Praticar as boas, portanto, é uma decorrência do poder da vida eterna em nós, não um esforço para merecê-la.

plugins premium WordPress