Apocalipse 19.1-10: Aleluia!

ALELUIA!

(Apocalipse 19.1-10)

O livro de Apocalipse nos transporta para o futuro, mas sem perder a perspectiva do presente. É por isto que inspirou aos seus primeiros leitores. É por isto que nos inspira ainda hoje. A história do mundo em que vivemos está ali interpretada com os olhares de Deus, como um convite a que olhemos para a nossa história com os mesmos olhares. Olhar para o nosso mundo com a perspectiva humana é algo aterrorizador; olhar para o nosso mundo com os olhares de Deus é confortador.

(1) Depois disso ouvi nos céus algo semelhante à voz de uma grande multidão [como um coro formado por uma multidão imensa], que exclamava:
“Aleluia! A salvação, a glória e o poder pertencem ao nosso Deus, (2) pois verdadeiros e justos são os seus juízos. Ele condenou a grande prostituta [Roma e seu império] que corrompia a terra com a sua prostituição [luxúria]. Ele cobrou dela [de Roma e todos os perseguidores ao longo da história] o sangue dos seus servos [de Deus, que foram martirizados pelos impérios]”.

(3) E mais uma vez a multidão [em coro] exclamou:
“Aleluia! A fumaça, que dela vem, sobe para todo o sempre”.
O autor, 30 anos depois do incêndio de Roma, toma aquela tragédia para dizer que o sacrifício dos cristãos sobe como incenso de louvor ao Senhor.
Na Roma antiga, adorar ao Senhor, dizer “Kyrios Christus” (“Cristo é Rei”) custava a vida. Um destes momentos dramáticos foi o incêndio de Roma, ocorrido no dia 19 de julho de 64. O fogo durou cinco (segundo Tácito) a sete dias (segundo Suetônio) e destrui parcial ou totalmente 11 dos 14 distritos de Roma, com a maioria das casas construídas com madeira. Era como se fosse uma floresta de madeiras secas pegando fogo.
Há muita controvérsia sobre o incêndio, mas o historiador Tácito (c. 55-c. 117), que tinha uns 10 anos à época, escreveu:

“Mas nem todos os socorros humanos, nem as liberalidades do príncipe, e nem as orações e sacrifícios aos deuses podiam desvanecer o boato infamatório de que o incêndio não fora obra do acaso. Assim, Nero, para desviar as suspeitas, procurou achar culpados, e castigou com as penas mais horrorosas a certos homens que, já dantes odiados por seus crimes, o vulgo chamava cristãos.
O autor deste seu nome foi Cristo, que no governo de Tibério foi condenado ao último suplício pelo procurador Pôncio Pilatos. A sua perniciosa superstição, que até ali tinha estado reprimida, já tornava de novo a grassar não só por toda a Judéia, origem deste mal, mas até dentro de Roma, aonde todas as atrocidades do universo, e tudo quanto há de mais vergonhoso vem enfim acumular-se, e sempre acham acolhimento.
Em primeiro lugar se prenderam os que confessavam ser cristãos, e depois pelas denúncias destes uma multidão inumerável, os quais todos não tanto foram convencidos de haverem tido parte no incêndio como de serem os inimigos do gênero humano. O suplício desses miseráveis foi ainda acompanhado de insultos, porque ou os cobriram com peles de animais ferozes para serem devorados pelos cães, ou foram crucificados, ou os queimaram de noite para servirem como de archotes e tochas ao público.
Nero ofereceu os seus jardins para esse espetáculo, e ao mesmo tempo dava os jogos do Circo, confundido com o povo em trajes de cocheiro, ou guiando as carroças. Desta forma, ainda que culpados, e dignos dos últimos suplícios, mereceram a compaixão universal por se ver que não eram imolados à pública utilidade, mas aos passatempos atrozes de um bárbaro”. (Annales XV, 44, 2-5)
O eco da história ressoa nas páginas do Apocalipse.

Em meio à fumaça, à lembrança da dor, à visão do sangue dos justos,

(4) Os 24 anciãos [24 líderes, simbolizando duas vezes as tribos  de Israel, as turmas sacerdotais dos filhos de Aarão e duas vezes os apóstolos de Jesus Cristo, para simbolizar a totalidade dos cristãos] e os quatro seres viventes [segundo Ezequiel 1.5-14, um leão com sua realeza, um boi com sua força, um homem com sua inteligência, uma águia com sua visão] prostraram-se e adoraram a Deus, que estava assentado no trono, e exclamaram: “Amém, Aleluia!”
(5) Então veio do trono uma voz [do coro das multidões], conclamando: “Louvem o nosso Deus, todos vocês, seus servos, vocês que o temem, tanto pequenos como grandes!”
(6) Então, ouvi algo semelhante ao som de uma grande multidão, como o estrondo de muitas águas [como o som de uma catarata] e fortes trovões, que bradava: “Aleluia!, pois reina o Senhor, o nosso Deus, o Todo-poderoso. (7) Regozijemo-nos! [Celebremos!] Vamos nos alegrar e dar glória! Pois chegou a hora do casamento do Cordeiro [Jesus Cristo], e a sua noiva [a Igreja, formada pelos salvos, aqueles que tiveram seus pecados confessados e perdoados] já se aprontou. (8) Para vestir-se, foi dado linho fino, brilhante e puro”. [O vestido da noiva era de linho fino.]
O linho fino são os atos justos dos santos.
(9) E o anjo me disse:
“Escreva: Felizes os convidados para o banquete [festa] do casamento do Cordeiro!”
E acrescentou:
“Estas são as palavras verdadeiras de Deus”.
10 Então, caí aos seus pés para adora [ao anjo], mas ele [o anjo] me disse:
 “Não faça isso! Sou servo como você e como os seus irmãos que se mantêm fiéis ao testemunho de Jesus. Adore a Deus! O testemunho de Jesus é o espírito de profecia” [conteúdo da Revelação de Deus na Bíblia.]

Há na Bíblia uma palavra que sintetiza a ação humana chamada adoração. É “Aleluia”.
Ela aparece 27 vezes na Palavra de Deus, 23 nos Salmos (a primeira em 104.35) e quatro em Apocalipse 19 (versos 1, 3, 4 e 6). Ela não está em nenhum outro lugar do Novo Testamento; só aqui, neste capítulo 19; no Antigo Testamento é exclusiva dos Salmos, onde surge só no último terço. Aleluia é a transliteração de uma palavra hebraica que significa “Louvem ao Senhor” ou “o Senhor seja louvado”.
Não é por acaso este cuidado do Inspirador da Palavra de Deus. Quer dizer que não é palavra para ser banalizada. Antes, é para ser usada, sem medo, só na adoração, privada ou pública.
De igual modo, a adoração a Deus não pode ser transferida para um ídolo, tenha forma humana ou divinizada. A história narrada em Apocalipse 19 inclui uma advertência. O portador da mensagem sobre Deus foi confundida com Deus. Na melhor das intenções, o receptor da mensagem quis adorar o porta-voz, que não aceitou. Gritou ele:  “Não faça isso! Sou servo como você e como os seus irmãos que se mantêm fiéis ao testemunho de Jesus. Adore a Deus! O testemunho de Jesus é o espírito de profecia” (verso 10).
Esta é uma tentação: substituir Deus, que é imortal e invisível, por aqueles que julgamos ser suas representações, visíveis embora mortais.
Devemos tomar cuidado: a adoração tem uma dimensão pública. O somatório dos nossos desvios pode estar aqui, no todo ou em parte.

Tomando “Aleluia” como síntese, podemos falar deste nosso ato de adoração em termos que nos desafiam.

1. Quando digo “Aleluia”, estou negando a mim mesmo (versos 1, 5 e 6).  
Estou dizendo que não sou digno de louvor, mas Deus é. Estou reconhecendo a minha limitação e a afirmando a majestade de Deus. Neste sentido, o louvor nasce de uma visão sobre Deus, a quem canto. Então, o louvor nasce de uma visão de nós mesmos, que só não nos comprime e arrasa porque em nossa visão notamos que Deus é amor. Diante de Deus, Isaías tremeu por causa dos seus pecados e os do seu povo. Assim mesmo adorou a Deus, temendo e tremendo, e Deus o purificou e o chamou para ser seu missionário. O mesmo acontece conosco.
Louvor, portanto, envolve a vida toda. Não é um momento na vida, mas a vida num momento. Louvar inclui a emoção, mas não se esgota nela. Louvar se conjuga com arte, não uma arte que aponta para a grandeza do artista, mas para a majestade de Deus. Neste sentido, uma música sacra pode ser profana, dependendo de quem sai honrado: se o artista, é profana; se Deus, é sacra. A recíproca pode ser verdadeira.
Quando dizemos publicamente “Aleluia”, estamos nos inscrevendo na comunidade dos redimidos por Jesus Cristo. Estamos dizendo que a nossa igreja (a igreja a que pertencemos, local ou nacionalmente) não é digna de honra, mas que nós honramos ao nosso Senhor. Como igreja não somos o centro, não somos os dirigentes da sociedade; somos apenas um corpo com um Cabeça, que é Jesus Cristo; somos apenas testemunhas de Jesus Cristo. Não existimos para nós mesmos. Não cultuamos uns aos outros. Somos a comunidade que canta “Aleluia”. A adoração tem, assim, uma dimensão comunitária.
A adoração, pois, corresponde a uma auto-negação, pessoal e comunitária.  “Aleluia!, pois reina o Senhor, o nosso Deus, o Todo-poderoso” (verso 6).

2. Quando digo “Aleluia”, estou reafirmando, para mim mesmo, para os meus ouvintes e para o meu Deus, que Deus tem o controle da história (versos 1 e 2).
Os leitores primeiros de Apocalipse olhavam, estivessem na capital ou em qualquer outra cidade, ilha, vila ou aldeia, olhavam perplexos para o seu tempo. Até quando Roma governaria o mundo, com sua truculenta sabedoria; até quando os imperadores seriam cultuados como deuses; até quando o estilo de vida que Jesus propôs no sermão do monte continuaria praticado por tão poucos; até quando os cristãos teriam que pagar com suas próprias por crerem em Cristo, açoitados, aprisionados, despojados, degredados, martirizados; até quando teriam que esperar para que Cristo fosse rei em lugar do César de plantão na Itália?
Até quando suas perguntas continuariam sem resposta?
Até quando nossas perguntas continuarão sem resposta?
Até quando veremos os corruptos desafiando a justiça em todos os poderes? Até quando os senhores das guerras continuarão se enriquecendo, como se fosse canibais, à custa do sangue das crianças, cujo sangue seus fuzis, tanques e bombas bebem?
Até quando nossos queridos procurarão inutilmente por empregos? Até quando esperaremos pela intervenção de Deus no corpo e na mente de uma pessoa por quem intercedemos? Até quando os criminosos dizimarão nossas cidades, arrastando nossas crianças, amedrontando nossos adolescentes, ceifando nossos jovens, mutilando nossas mulheres, ameaçando nossos velhos,  em troca de dinheiro ou de prazer? Até quando nossas mentes serão escravas de traumas, vícios e transtornos?
Então, vendo ou não Deus já em ação, eu canto: “Aleluia! A salvação, a glória e o poder pertencem ao nosso Deus, pois verdadeiros e justos são os seus juízos. Ele condenou a grande prostituta que corrompia a terra com a sua prostituição. Ele cobrou dela o sangue dos seus servos”.  Toda a ordem que aí está, mesmo que parece irremovível, imbatível, invencível, já está condenada; todo este sistema contra Deus e seus filhos vai ruir. Ainda não vemos a vitória de Deus e a de seus filhos, mas louvemos a Deus porque a vitória é certa pelo poder de Deus. A salvação, embora tudo pareça perdido, está com Ele. A glória, mesmo que recoberta pela névoa, é dEle. O poder, mesmo que pareça sob o controle dos barões do tráfico de drogas ou de influências, lhe pertence.
Não estamos vendo? Louvemos a Deus, que iremos ver. “Verdadeiros e justos são os seus juízos”.

3. Quando digo “Aleluia”, estou me dispondo a pagar o preço pelo meu louvor (verso 3).
Para se ir a um show-louvor, preciso pagar apenas o preço de um ingresso. Para se adorar, o preço não é um ingresso que se paga com dinheiro, mas ingresso que se paga com o próprio sangue.
O preço muda de moeda no tempo e no espaço. Em Roma, podia ser a própria vida. Ainda hoje é assim em muitos países. Em nosso país, o preço é o auto-exílio. Os cristãos, em parte por seus próprios erros, e em parte por um movimento orquestrado para expulsar Deus, estão sendo acuados. Somos vistos como retrógrados porque pregam valores fincados há três mil anos. Somos vistos como autoritários por anunciarmos que só Jesus Cristo é o caminho de reconciliação entre os homens e Deus.
Temo pelas novas gerações e desejo que tenham a coragem do martírio profissional, acadêmico e relacional. Temo pelas crianças nascidas num tempo de tecnolatria e relativismo pleno. Desejo que os cristãos não se recolham aos templos, onde são cristãos por um período (como se templo fosse um lugar de refúgio e não de festa), por terem medo de ser cristãos no trabalho, na escola, nos círculos e na família ou por isto não lhe ser mais permitido.
A opressão sobre os cristãos, tenha a forma tiver, é uma fumaça que sobe aos céus. Louvado seja Deus que recebe os corpos reduzidos a cinza pela crueldade humana. Então, não importa o preço, “louvemos o nosso Deus, todos nós, seus servos, nós que o tememos, tanto pequenos como grandes!” (verso 5b).

4.  Quando digo “Aleluia”, estou ciente que meu louvor deve ser coerente com o meu desejo de viver de modo digno da minha adoração (verso 8b).
O verso 8 descreve a glorificação de Jesus Cristo, como uma festa de casamento. Jesus é o noivo. A cena descreve Jesus sendo vestido para a festa. Sua roupa é de linha fino, brilhante e puro.
Muitas imagens do Apocalipse ficam  sem interpretação. Esta, não; o próprio autor explica: “O linho fino são os atos justos dos santos”.
O sentido é claro: a adoração deve ser acompanhada de atos justos, isto é, de obras de misericórdia. Adoração sem misericórdia não é aceita por Deus; é como o sacrifício no Antigo Testamento, sobre os quais o Senhor Deus diz: “Desejo misericórdia, e não sacrifícios; conhecimento de Deus em vez de holocaustos” (Oséias 6.6).
O maior desafio aos cristãos não é o louvor. Somos bons nisto. Nosso maior desafio é a vida. Louvamos bem. Amamos bem? Sacrificamos bem. Servimos bem? Deus quer sacrifício e vida, louvor e santidade, cântico e serviço ao próximo.
Conheço muitas pessoas, em todas as idades, que podem olhar para trás e dizer que sua vida foi um “aleluia”, com os lábios e com a vida.
Todos precisamos olhar para frente e desejas nossas vidas sejam “aleluias”, com a vida e com os lábios.
Ao ler este texto, fiquei incomodado, e ainda estou, ao saber que as vestes de Jesus são os nossos atos de justiça. Meu Deus! Que peso! Quer dizer que Jesus ficará nu ou andrajoso se a minha vida não produzir atos de justiça?
Leio também que a roupa de Deus é de linho fino, brilhante e puro, como a dizer: assim deve ser a minha vida: fina, brilhante e pura.
Meu louvor precisa ser fino (caprichado), brilhante (exaltado) e puro (sacro). Isto demanda esforço.
Minha vida deve ser tecida com atitudes finas (dedicadas ao próximo, sintonizada com o céu), atos brilhantes (transparentes, verdadeiros) e intenções puras (santas, limpas). Isto nos pede corações voltados para Deus, o dia todo.
(ISRAEL BELO DE AZEVEDO)

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